Vou propor, rapidamente, propor um norte para que se pense o
sentido do que ocorre. Sem aprofundamentos, alerto, apresento apenas ideias
expostas como parte de uma compreensão mais global sobre essa conjuntura.
Utilizo o termo “multidão”, inspirado nesse conceito de Hardt & Negri, nos
seus livros “Império” e “Multidão”, diferenciado de “povo”, que se refere especificamente
ao Estado Nação, modelo (Estado Nação/povo) desgastado profundamente durante
todo o século XX, tendo sido o seu enfraquecimento (e até mesmo fim, como
querem alguns) uma das características do século. Uso a noção de
direita/esquerda de Norberto Bobbio, sendo a primeira voltada para práticas de
concentração de renda, num claro desequilíbrio da balança, e a segunda para a
distribuição de renda, equilibrando a balança social.
Em primeiro lugar, tratemos do porquê dessas manifestações
serem possíveis em uma sociedade aparentemente despolitizada, de pessoas que
descreem dos políticos e de suas instituições, não filiadas a partidos e não
conectadas aos discursos destes, logo pessoas, cidadãos, sem lideranças políticas
significativas. Aliás, duas das principais dessas lideranças sofrem ataques até
mesmo de quem antes os apoiava ou suportava e é claro que falo do ex-presidente
Lula e da atual presidente Dilma Rousseff. E não creio, digo já, possível
definir as manifestações contra o governo como compostas por “leitores da
Veja”, membros da apedrejada “direita”, até porque o posicionamento
esquerda/direita parece, hoje, muito difuso e há claras situações em que
governos que são definidos ou se definem como “direita” ou “esquerda” assumem
atos e posições que desmentem esse status. O caso brasileiro me parece
exemplar, a não ser que se considere a estratégia populista do governo do
Partido dos Trabalhadores como práxis da esquerda. Eu não considero assim. Parece
haver muitas nuances entre a direita e a esquerda.
Nem esquerda, nem
direita
Começo dizendo que não há como definir precisamente o motivo
que tem levado milhões de pessoas, todos os dias, em inúmeras cidades
brasileiras para as ruas, tomando-as para, juntas, protestar. se isso for feito
com base nas velhas teorias e corriqueiras compreensões dos fenômenos de massa.
Há novidades e uma delas é a falta de um centro organizador.
Efetivamente, não há. Como a “Multidão” descrita por Negri e Hardt, não se
trata de povo, de manifestação popular no sentido clássico do termo, como visto
em todos os países ocidentais, notadamente na segunda grande guerra. Não são
fascistas, nazistas ou comunistas, os manifestantes. Não são de esquerda ou de
direita, nem de qualquer centro. Não sequer se pode dizer que compartilham de
uma posição moderada ou militante. Não se trata de nada disso.
Confusão inevitável
Não há dúvida que nossa sociedade interligada em rede forma
um imenso corpo virtual e, mais ainda, que como em qualquer multidão, o
participante unitário não se sente mais preso a seu mísero corpo, mas
experimenta a sensação de ter um imenso e forte corpo, o da multidão. Maffesoli
tratou bem desse tema e nos orienta para a reflexão sobre o fim da identidade
como conhecida por nós até algumas décadas. Em seu lugar, um processo constante
de identificação, ou, mais precisamente, identificações. Se constante, é claro,
mostra-se multifacetado, caleidoscópico, próprio para ocasiões, vestido de
acordo com a moda ou com a tribo da qual se faz parte.
Torna-se mais fácil, a partir deste ponto, compreender o
porquê das manifestações e, acima de tudo, o seu caráter plural, fragmentário
e, por que não dizer, confuso, claramente confuso. Mas, olhe em qualquer
dicionário o significado de “confusão”. Depois me diga se não é mesmo confuso, como
teria que ser algo assim. Mais: se você observar bem, a vida é um tanto
confusa, muitas vezes e, pior ainda, as mudanças historicamente constantes da
sociedade humana e, principalmente as dos últimos cinquenta anos parecem tornar
as coisas mais incertas, mais passíveis de produzir confusão.
No meio do turbilhão, porém, há um sentido.
A nacionalidade
oculta vai aparecendo
No caso brasileiro, o sentido se dá por uma insatisfação não
consensual, mas unânime, em relação a, em primeiro lugar, o Estado enquanto
entidade que teria como função, ao menos se justifica assim, proteger o
cidadão, tratando-o com respeito, não o distinguindo, igualitariamente. Em
segundo lugar, contra a lógica desse mesmo Estado, que além de não oferecer
serviços públicos de qualidade, arrecada impostos com insana voracidade e
privilegia grupos específicos a despeito do cidadão. As manifestações dizem
isso, ainda que com cartazes, palavras de ordem e pensamentos divergentes.
Alguns falam em manipulação das massas, outros tremem de medo
de um golpe de Estado, há mesmo os que propõem o tal golpe e os que vão para
ruas sentir o gozo de andar com milhões a seu lado, real e virtualmente, em
diversos lugares. De certo modo, por detrás dos ecos dessa multidão, dessa
confusão multifacetada de vozes dissonantes, há uma comunidade imaginada e um
povo, sim, um povo, não uma multidão, que a imagina. O que quero dizer é que há
nas manifestações um espírito de nacionalidade desenhado sob a garatuja da
turba pacífica ou não, incendiária ou não.
Chega de vira-latice
Curioso é perceber que tudo isso acontece durante um torneio
internacional de futebol que, no fim das contas, passou de astro para um papel
coadjuvante com velocidade indescritível. De certo modo, uma das mais
importantes mensagens que podem estar sendo transmitidas é que o “escrete”
(como chamava Nelson Rodrigues a seleção nacional de futebol) não é mais a
pátria em chuteiras. O povo brasileiro, expresso por essa multidão das ruas,
parece dizer que é ele que quer, a partir de agora, calçar as chuteiras. Isso
pode significar a cura do complexo de vira-lata que o mesmo Nelson Rodrigues
diagnosticou como o mal fundamental, nato e hereditário, do brasileiro.
Ou, no fim das contas, tudo pode acabar na terça-feira. Não
terá sido mais do que um golpe patrocinado pelos donos do mundo que, segundo
consta, decidiram que é preciso mudar o comando do governo brasileiro, há quem
aposte, ou mesmo que tudo isso não passa de um movimento intestino “de
direita”. Bem, é preciso reconhecer que essas coisas, essas forças, existem e
provavelmente estão, se não nos bastidores desde o início, acompanhando com
interesse participativo tudo o que está acontecendo.
No entanto, é preciso ver que há mais forças agindo neste
nosso mundo do que supõe toda a filosofia que mantém as coisas como estão.